Edianne Nobre





“Il diavolo c’è anche nel ventunesimo secolo”.
Papa Francisco

 

Nas últimas duas décadas, pelo menos, vivemos um processo de aceleração do tempo promovido pelo desenvolvimento das tecnologias informáticas, pela globalização, pela popularização da internet, o que me fez pensar na midiatização da cultura religiosa ou na construção de uma cultura digital da religião, fomentada principalmente pelas redes sociais como o Facebook, Twitter, Instagram, blogs e jornais eletrônicos.

 

Quais seriam então as relações entre mídia e religião? Partimos do pressuposto que estas estabelecem entre si uma relação complexa de negociação, na qual uma usa do poder da outra para se afirmar, em uma relação de retroinfluência, assim “a religião é midiática, assim como a mídia é religiosa” (SBARDELOTTO, 2014, p. 76).

 

Hoje em dia podemos rezar, acender velas, casar e até morrer virtualmente. Nas redes sociais, compartilhamos correntes de sorte (para o azar de quem as recebe), consultamos nosso horóscopo, numerologia, runas, orixás. É possível entrar no site do santuário de Aparecida, por exemplo e acender uma vela virtual, além de encomendar uma missa para os entes queridos que “se foram desta para melhor” ou ainda, podemos espreitar nosso futuro com alguma cigana cartomante. A desmaterialização das coisas, corresponde assim, à própria deterioração da sacralidade, convertida agora em uma espécie de autoadoração e narcisismo reforçada pelo fenômeno das redes sociais, nossos alter ego virtuais. Assim, para Sbardelotto:

 

“[...] o processo social de midiatização digital da religião, ressignificado para o contexto digital, permite entrever o surgimento de uma ‘religião pública’ [...] na qual o reconhecimento de um poder simbólico compartilhado socialmente, mediante experimentação religiosa – neste caso, cristã – vai deslocando o papel central das instituições eclesiais no estabelecimento de crenças e práticas [...]” (SBARDELOTTO, 2014, 74).

 

Como historiadora das religiões, sempre me preocupou os discursos construídos pela Igreja Católica ao longo dos anos, principalmente, a partir do desenvolvimento da imprensa no Brasil. Com o advento da internet, a Igreja também passou a estar mais próxima de seus fiéis, agora, utilizando-se da linguagem virtual.


Em 21 de maio de 2013, dois meses após o conclave que elegeu o argentino Jorge Bergoglio como novo Papa da Igreja Católica ocidental, os sites religiosos italianos e estrangeiros deliraram com um vídeo do então Papa Francisco, promovendo um “exorcismo” em um rapaz em plena Praça de São Pedro, no coração de Roma:

“Estamos na Praça de São Pedro, exatamente nas proximidades do Arco dos sinos. A missa de Pentecostes acabou de terminar. Francisco começa, como sempre, com os doentes que participaram da celebração. O Papa se aproxima de um menino. O sacerdote que o acompanha o apresenta ao Papa com algumas palavras que não podem ser compreendidas. Mas a expressão de Francisco de repente muda. O Papa parece pensativo e focado e estende as mãos sobre o jovem rezando intensamente, enquanto o menino abre a boca. ‘Os exorcistas que viram as imagens não têm dúvidas: era uma oração de libertação do maligno ou um exorcismo real’, diz a Tv2000” (Jornal La Stampa Italia. GALEAZZI, Giacomo. “L’esorcismo del Papa in piazza San Pietro” de 21.05.2013. Disponível em: http://www.lastampa.it/2013/05/21/italia/cronache/l-esorcismo-del-papa-in-piazza-san-pietro-erHCERaqOfUeIC0wCDPk2H/pagina.html Acesso: 19.02.2017).


Algum tempo antes, em 16 de março de 2013 (uma semana após o Conclave), o jornalista Giacomo Galeazzi havia publicado uma matéria, na qual notava de maneira perspicaz que o Papa já havia falado sobre o demônio por duas vezes em suas homilias. O Diabo que estivera relativamente à margem durante o Papado anterior ao de Francisco, volta à cena de tal forma que rende à Francisco o epíteto de “novo João Paulo II” em alusão à política de perseguição ao demônio empreendida na década de 1980/90 pelo papa polonês.

 

O reaparecimento do Diabo no discurso papal abre margem para algumas inquietações que pretendo investigar nesta pesquisa que é objeto do meu pós-doutorado em História na Universidade Federal do Maranhão e se encontra em fase inicial. Busco investigar os usos da mídia pela Igreja Católica, a partir do discurso do Papa Francisco sobre o Diabo. Neste trabalho, especificamente, meu foco será a atuação da Associação Internacional de Exorcistas (Associazione Internazionale degli Esorcisti), que ganhou status jurídico em 2014, buscando pensar a construção de um modelo de comportamento para os jovens, fundado na reestruturação dos arquétipos sobre o Príncipe das Trevas.

 

A partir de uma primeira análise das Cartas Circulares e das publicações feitas na última década pela Associação, nos jornais oficiais do Vaticano (Osservatore Romano e Radio Vaticana), avento como hipótese inicial, que no discurso desta, o Diabo ganha um novo meio de atuação: a internet, ou melhor dito, esta mídia é ameaçadora porque difunde práticas ocultas que, por sua vez, permitem a entrada do “Príncipe deste mundo” na vida das pessoas.

 

Embora, paradoxalmente, seja hoje um dos principais veículos de divulgação do trabalho dos exorcistas, bem como, do próprio Papa Francisco, é possível perceber que, de forma geral, a internet é constantemente apresentada como o grande vetor de corrupção da alma humana, uma janela perigosa, pela qual, as vexações e tentações entram, podendo inclusive abrir espaço para a possessão demoníaca, justificando assim, a prática das orações de libertação e do exorcismo.

Para o padre René Laurentin: “A expansão do ateísmo, do materialismo e de tantas ilusões enganosas na nossa cultura e publicidade, levar-nos-ia, em meados do século XX,  a dizer: o demônio modernizou-se.”(In AMORTH, 2006, 13). O hedonismo, a vaidade, a pressa, o individualismo, a secularização, elementos que, segundo Bauman (2012), são indícios da “modernidade líquida”, para o padre Gabriele Amorth seriam as causas da influência do Diabo na contemporaneidade.

 

 

A Associação e seus servos

 

A Associação foi criada de forma extraoficial em setembro de 1991, e, idealizada pelo Padre Gabriele Amorth (1925-2016) que, desde os anos 1980, promovia cursos de capacitação e formação de novos exorcistas, bem como, organizava encontros, a nível nacional (Itália) e internacional, a fim de que estes compartilhassem suas experiências e construíssem estratégias de inserção nas igrejas locais e dioceses. Em dois de julho de 2014, ela foi reconhecida juridicamente pela Congregação para o Clero. Segundo o padre Francesco Bamonte (1960), da ordem Servos do Coração Imaculado de Maria e presidente da Associação desde 2012: “Na longa história da Igreja ainda não se havia constituído uma associação deste calibre: também isso é um sinal dos tempos!”( Cf. Riconoscimento Associazione Internazionale Esorcisti: intervista con p. Bamonte. News.va. Official Vatican Network. http://it.radiovaticana.va/news/2014/07/04/bamonte_riconoscimento_associazione_esorcisti/1102528. Acesso em 17.02.2017). A notícia se espalhou rapidamente provocando questionamentos na mídia e na comunidade católica em geral, sobre a validade de uma prática, considerada por alguns, antiquada, como o exorcismo.

        
Além disso, a Associação tomou como objetivo promover uma contínua renovação dos estudos sobre o exorcismo, em seus vários aspectos: dogmáticos, bíblicos, litúrgicos, pastorais e espirituais. Um dos resultados, por exemplo, foi a publicação de um novo Ritual de Exorcismos em 1999, pela Igreja Católica e a reafirmação através da voz de João Paulo II da existência e da necessidade de combater o Diabo.

É importante notar que a Associação é composta também por pedagogos, psicólogos, neurologistas e psiquiatras que atuam no sentido de descartar problemas patológicos que, por ventura, possam ser confundidos com possessão ou influência demoníaca. Assim, a articulação entre o saber médico e o saber religioso é fundamental no sentido de dar legitimidade ao trabalho do exorcista. Para o padre Bamonte: “A primeira preocupação de cada exorcista de bom senso é a de evitar de criar ou manter ilusões de uma possessão quando esta não existe” (Idem.)

Outro objetivo importante da Associação que vem ganhando destaque, é o combate à difusão de práticas ocultas, consideradas como causadoras principais dos casos de possessão na contemporaneidade, entre estas podemos citar: a busca por cartomantes, astrologia, centros espíritas e até práticas como o Reiki e a Yoga:

“Estas práticas abrem caminho à atividade demoníaca extraordinária. Certamente, o número de pessoas que se voltam a essas práticas com graves danos sociais, psicológicos, espirituais e morais, está em constante aumento e isso nos preocupa porque, prontamente, tivemos também um aumento da atividade demoníaca extraordinária, em modo particular vexações, obsessões e sobretudo possessões diabólicas. [...] por outro lado, assistimos a contínua proliferação de mensagens midiáticas, livros, programas televisivos, programas cinematográficos, que, de algum modo, na esteira do sensacionalismo e do espetáculo, incentivam, sobretudo, as novas gerações, a ocuparem-se do ocultismo, do satanismo e, às vezes, a praticá-lo” (Entrevista ao psiquiatra Valter Cascioli, porta voz oficial da Associação Internacional de Exorcistas em 27.10.2014. Radio Vaticana. News.va.   Cf. http://it.radiovaticana.va/news/2014/10/27/messaggio_del_papa_allassociazione_internazionale_esorcisti/1109518 . Acesso em 11.03.2017.).

Assim, várias seriam as formas de intervenção de Satanás na vida moderna:
“[...] a vexação, por meio da qual muitas pessoas são ‘feridas pelo demônio na saúde, nos bens, no trabalho, na vida afetiva’. Na obsessão, por sua vez, o demônio produz pensamentos repetitivos e destrutivos, deixando a pessoa ‘num continuo estado de prostração, de desespero, de tentação de suicídio’. As possessões são a forma mais intensa – mas igualmente a mais rara – de ataque, no qual ‘o demônio toma posse de um corpo [...] fazendo-o agir ou alar como ele quer, não podendo a vítima resistir e não sendo moralmente responsável por isso’” (SARTIN, 2016, 450). Há ainda um quarto tipo, a infestação, quando a ação demoníaca se estende sobre as casas, os objetos, os animais, lembrando-nos o popular fenômeno do poltergeists.


Novos esquemas de representação social são forjados a partir de uma imagem antiga que reforça a cosmologia dual e maniqueísta do mundo. Diante dos novos desafios que o novo milênio traz, a Igreja busca através do domínio da tecnologia, reinserir os jovens cooptados pelos prazeres mundanos.

Neste discurso é possível identificar também a construção de um relato histórico que parece entender que o controle sobre o passado garante o controle sobre o presente e sobre o futuro. O Diabo, agora, não possui somente os corpos humanos, ele também é virtual, mascarado em bits e bytes tenta convencer o homem do século XXI de que não existe.

O Catecismo da Igreja Católica, reeditado em 1992, reafirma a existência do Diabo. Francisco afirma “Il diavolo c’è anche nel ventunesimo secolo“ e sua maior astúcia é fazer crer aos homens que ele não existe. O investimento da mídia católica na figura do Diabo, agora em versão pixel e seu reforço como inimigo da Igreja, produz novos medos e gera novas estratégias de controle, como a reafirmação da necessidade do exorcismo e das práticas de liberação.

Os jovens são, neste contexto, o principal público-alvo, da mídia-diabo e da Igreja, tanto que em novembro de 2018 foi realizado um Sínodo com bispos e cardeais de diversos países e um grupo de estudantes europeus, cujo tema central foi a presença dos jovens na Igreja. Trazendo questões como o sexo antes do casamento, gênero, sexualidade, pobreza e migração. O evento se destacou pela inclusão da sigla LGBT no Instrumentum Laboris, (documento que apresenta os resultados das discussões feitas) e pela sugestão de realização de um Concílio Pontifício para os Jovens, onde os padres cunharam como jargão, a expressão: “Bulimia dos meios, anorexia dos fins, info-obesidade e os desafios na era digital”, entre eles, a “perda da cultura da oralidade”(Sinodo, in aula si discute di sesso prematrimoniale, gender, povertà e migrazioni po Salvatore Cernuzio, Vatican Insider, La Stampa, 05.10.2018. Acesso em 05.10.2018) em proveito de uma cultura midiática, tomada aqui no sentido da burla e da falsidade, assim diz Francisco: “A variedade de opiniões sendo transmitidas pode ser vista como boa, mas também pode levar as pessoas a se entrincheirarem atrás de suas fontes de informação, que vão apenas confirmar seus desejos e ideias ou interesses políticos e econômicos” (In ANGELINI, 2014, 81).

Entender as relações estabelecidas entre a política papal no contexto das transformações tecnológicas nos servirá para pensar as estratégias de controle empreendidas pela Igreja para manutenção do seu poder no século XXI, bem como, para refletir sobre as apropriações históricas feitas por esta diante da emergência dos novos deuses americanos (a mídia, a internet, a globalização) ou poderíamos dizer, do surgimento de um Satã high tech?



Edianne Nobre é Professora Adjunta da Universidade do Pernambuco. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Festas e Religiões (GEFRE/CNPq) e Pós-doutoranda em História pela Universidade Federal do Maranhão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGELINI, Maria Cristina. Os gestos dos Papas no Brasil: relações entre o presencial e o midiatizado. (Dissertação de Mestrado) São Paulo, Faculdade Casper Líbero, 2014.


BAUMAN, Zygmunt. Isto não é um Diário. Rio de Janeiro, Zahar, 2012.
LAURENTI, René. “Prefácio à edição francesa” In AMORTH, Gabriele. Um exorcista conta-nos. 6ª. Edição. Prior Velho: Paulinas, 2006. P.13.

SARTIN, Philippe. A igreja católica, a possessão demoníaca e o exorcismo: velhos e novos desafios. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 21, V.8, n.2 (maio/agosto 2016). P. 450.

SBARDELOTTO, Moisés. Religião Pública: desdobramentos da midiatização da religião na cultura digital. Tear Online, São Leopoldo, v. 3, n.1, p. 73-86, jan-jun. 2014.

2 comentários:

  1. Olá, Professora! Interessantíssima a sua pesquisa. Poderíamos dizer que o contexto da sociedade contemporânea (os conflitos sociais, econômicos e étnicos, o mal-estar contemporâneo: depressões, angústia, ansiedade, etc.) são aspectos que podem aumentar o fundamentalismo religioso? Por outro lado, percebo (meu senso comum) que há a inclusão de uma certa racionalidade científica dentro da própria religião, por exemplo: Quando padre Fábio de Melo faz uma leitura bíblica voltada para a metáfora dos escritos, menos no seu sentido literal. De acordo com suas pesquisas, poderíamos dizer que em paralelo à ressignificação do diabo, há também outro "movimento", inclusive dentro da igreja, de uma certa desmistificação/desconstrução dos escritos bíblicos?
    (Graziele Rodrigues de Oliveira)

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  2. Olá, Professora, obrigada pela reflexão.
    Nesse processo histórico entre o bem e o mal não seria o Diabo apêndice do Cristianismo, e como tal, a Igreja não abre mão dele usando estratégias de apropriação dos mecanismos de mídia hoje?
    A religião cristã sobreviveria sem sua posição de vigilante contra o causador de todos os problemas que afligem a humanidade?
    Grata
    Fátima Ribeiro de Almeida

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