Bruno José Yashinishi


MOVIMENTOS SOCIAIS BRASILEIROS NA REPÚBLICA VELHA: REPRESENTAÇÕES DO CANGAÇO NO FILME LAMPIÃO E MARIA BONITA (1982)


Introdução

O presente trabalho pretende servir como um plano de aula para a disciplina, tendo como tema o movimento social do campo chamado Cangaço, ocorrido durante o período da República Velha no Brasil.

Esse plano de aula tem como objetivos gerais a demonstração do uso do cinema como agente de compreensão histórica, despertando no aluno uma sensibilidade maior e crítica sobre um filme que lhe permita uma análise ideológica e política, assim também como uma associação dos acontecimentos a uma teia de informações explícitas ou implícitas no longa-metragem selecionado.

O primeiro período republicano do Brasil, conhecido como “República Velha” que vai de 1889 a 1930, pode ser subdividido em dois outros períodos: a “República da Espada” (1889-1894) e a “República das Oligarquias” (1894-1930). O primeiro marcado pelos governos militares centralizadores e o segundo pelo domínio político das oligarquias agrárias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Em ambos os casos, o continuísmo político que caracterizou a “República Velha” tornou nula a participação popular e esteve longe de suprir as necessidades das grandes massas da população brasileira. Como consequência trouxe uma grande exclusão social propiciadora do surgimento de revoltas que demonstravam o descontentamento das camadas populares para com as oligarquias dominantes tanto no campo quanto nos centros urbanos.

No caso do campo, a exclusão dava-se de forma intensa, pois a herança colonial de se ter o domínio de muitas terras nas mãos de poucos fazia com que houvesse opressão sobre o campesinato por parte da elite agrária. Somados a isso, o coronelismo no Nordeste do país e as grandes secas responsáveis pela fome e miséria do povo fizeram com que surgissem diversas revoltas, dentre as quais uma das mais importantes é o movimento de banditismo social conhecido como “cangaço” .

Tomando como fonte histórica o filme dirigido por Paulo Afonso Grisoli, Lampião e Maria Bonita (1986) e tendo em vista as possibilidades de se trabalhar com o cinema em História, pode-se ter uma noção de como era a vida de um dos maiores líderes do cangaço Virgulino Ferreira da Silva, ou o Lampião como era popularmente conhecido, e entender que suas lutas e de seu bando representam uma forma de resistência do sertanejo frente à situação opressora que o assola.

É importante lembrar que o cinema tem sua linguagem própria e que existem muitas dificuldades de trabalhar sua relação com o ensino de História. Porém, o objetivo desse plano de aula é justamente oferecer um apoio a esse tipo de abordagem, ciente de suas dificuldades, mas com o intuito de percorrer tais caminhos buscando sempre tomar o filme como um documento sob o qual podemos estudar e relacionar o conteúdo didático da disciplina de História.

De maneira geral esse trabalho consiste num despertar de criticidade e numa espécie de introdução na possível ligação entre o Cinema e o Ensino de História. Também incitando, mais do que de maneira especulativa, uma abordagem temática focada na realidade do sertão brasileiro durante o período do Estado Novo e no movimento social aí surgido, o cangaço. Através do filme, se espera que o modo de vida dos cangaceiros, suas lutas e causas possam entrar em discussão e aprofundamento teórico que vá além do exposto no material didático.

O período da República Velha no Brasil (1889-1930) e o cangaço

O contexto histórico em que o tema desse trabalho se situa é o período da história brasileira chamado de Primeira República ou República Velha (1889-1930). Segundo Boris Fausto:

“A descrição do processo político que vai da proclamação da República às presidências civis nos permitiu ter uma ideia de como se consolidou um certo tipo de República. Até aqui, deliberadamente, ela foi chamada quase sempre de República liberal (...). Entretanto, a Primeira República recebeu outras designações. As mais sugestivas são as de República oligárquica, República dos “coronéis”, República do “café-com-leite””(FAUSTO, 2006, p. 261).

Essas denominações adotadas por Fausto são correntes na historiografia por ser a política da República Velha almejada e controlada pelas elites oligárquicas, que eram uma porção mínima da sociedade, mas que exercia o poder sobre as políticas estaduais do sistema federalista. Também os coronéis, que exerciam o poder local, influenciavam no contexto político de forma direta, pois controlavam os votantes de sua área de influência. A denominação “política do café com leite” designa a política das oligarquias que alternavam na presidência da República políticos de São Paulo e Minas Gerais (FAUSTO, 2006).

Maria Efigênia Lage Resende caracteriza o processo político da primeira República como excludente e oligárquico, pois se trata de um sistema baseado na dominação de uma minoria e exclusão de uma maioria no processo de participação política (2003).

Dentre todo o desenvolvimento dessa política trazido pela autora constata-se o continuísmo do poder e a não agregação dos interesses e participação da grande massa da população brasileira. Esse contexto acabou por não viabilizar avanços na construção de cidadania desde a independência do Brasil (RESENDE, 2003).

Essas características do sistema político geraram o surgimento de revoltas, demonstrando o descontentamento das camadas populares para com a elite dominante. Essas revoltas ocorriam tanto no espaço urbano quanto no rural e cabe aqui ressaltar suas presenças no próprio sertão brasileiro.

Para se entender o conceito de “sertão”, Janaína Amado demonstra o quanto à historiografia debruçou-se sobre ele salientando sua importância aos estudos históricos e usos nas diferentes regiões do país:

“No conjunto da história do Brasil, em termos de senso comum, pensamento social e imaginário, poucas categorias têm sido tão importantes, para designar uma ou mais regiões, quanto a de "sertão". Conhecido desde antes da chegada dos portugueses, cinco séculos depois "sertão" permanece vivo no pensamento e no cotidiano do Brasil, materializando-se de norte a sul do país como sua mais relevante categoria espacial: entre os nordestinos, é tão crucial, tão prenhe de significados, que, sem ele, a própria noção de "Nordeste" se esvazia, carente de um de seus referendas essenciais” (AMADO, 1995, p.145).

Originário dos portugueses, “sertão” foi apropriado pelos brasileiros para denominar regiões longínquas ou quase desabitadas ligadas, sobretudo ao interior do país. Sua associação com o Nordeste brasileiro deve-se ao levar em conta essa característica (AMADO, 1995, p. 145).

Devido ao jugo coronelista no Nordeste do Brasil, foi no sertão que surgiu uma das formas de resistência mais significativas, o banditismo social. O historiador Eric Hobsbawm classifica esse fenômeno como uma forma alternativa de mudar a sociedade, mesclando aqueles que são considerados em seu seio como bandidos com o ideal maior de um movimento de maiores proporções capaz de representar a justiça feita com as próprias mãos:

“Quando o banditismo se funde assim com um movimento de maiores proporções, torna-se parte de uma força capaz de mudar a sociedade, e que efetivamente a muda. Já que os horizontes dos bandidos são estreitos e circunscritos, como os do próprio campesinato, os resultados de suas intervenções na história talvez não sejam aqueles que esperavam. Podem mesmo ser o oposto do que previam. Entretanto, isso não faz do banditismo uma força histórica menor” (HOBSBAWM, 2010, p. 50).

Atrelado ao banditismo social está o grupo dos cangaceiros, que de acordo com Rafael França (2012) se apresenta como expressão do uso coletivo da violência, independente, camponeses apelando para o banditismo, e dirigiam-se contra os senhores patriarcais. Contudo a adesão aos bandos de cangaceiros nem sempre era motivada por vingança ou autodefesa, esse meio de vida tornou-se área de realização, não só econômica, mas também de poder e prestígio.

O termo “cangaço”, segundo Marcos Edilson de Araújo Clemente é definido na literatura para referir-se ao bandido que vive debaixo da canga, o complexo de armas sobrepondo-lhe o corpo, mas principalmente para referir-se a um modo específico de ação independente, em que o cangaceiro estaria subordinado apenas ao seu bando (2007).

Foram vários os bandos e os líderes cangaceiros durante esse período. No entanto, o “rei do cangaço” foi Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Para Carolina Gomes, Mônica Hackmayer e Virgínia Primo:

“Tido por muitos como um justiceiro social e por outros como um bandido que matava a sangue frio, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, foi o cangaceiro que mais acendeu a imaginação popular. Uma das lendas que explica seu apelido diz que ao se apresentar ao bando de cangaceiros, aos 17 anos, Virgulino usou um truque que transformava um fuzil em metralhadora. A mágica consistia em amarrar ao mesmo tempo um lenço no cotovelo e na peça do disparador, de modo que quando acionasse o gatilho, o fuzil se armasse. Até hoje no Nordeste esse feito é conhecido como o “pulo do Lampião””(GOMES;HACKMAYER;PRIMO, 2008, p. 16).

Virgulino entrou para o cangaço em 1916, pois não confiava na ação da justiça pública, além disso, pretendia vingar o assassinato de seu pai, morto em uma busca policial. A figura de Lampião apresentou-se por longo tempo como a do Robin Hood brasileiro, que roubava dos ricos para dar aos pobres. Entretanto essa ideia é contestada por muitos, pois a revolução social que ele aparentava defender estava conivente com a própria elite agrária, que precisava dos bandos e de sua “valentia” para estabelecer a ordem social na então República Velha. (GOMES; HACKMAYER; PRIMO, 2008).

Ainda que haja contestações a respeito do mito de Lampião, sua companheira Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, ele é fundamental para se entender os movimentos sociais rurais do período da primeira República e como era a vida do sertanejo frente a realidade política do país.

O uso do filme Lampião e Maria Bonita como representações do cangaço

Antes de cumprir nesse plano de aula os objetivos propostos para o trabalho de inter-relações entre História e Cinema, bem como a proposta temática que aborda, será preciso uma fundamentação teórica concisa e direta a respeito do que será trabalhado e o conhecimento prévio e minucioso do professor a seu respeito.
O primeiro passo é refletir sobre o uso do cinema e sua relação com o conhecimento histórico. Para tanto, Marc Ferro em seu célebre livro Cinema e História (2010) vai dizer que as interferências entre a História e o cinema são múltiplas e que o filme tem a capacidade em si de ser tomado como um documento histórico.

Analisando a história da pesquisa histórica, o autor constata que os historiadores selecionaram fontes conforme a realidade de sua época, então atualmente o filme pode ter autoridade nesse sentido, pois além se ser contextualizado também apresenta particularidades que ilustram bem uma pesquisa histórica, como por exemplo, o que Ferro chama de “lapsos”, ou seja, características de sua produção que suscitam aporte suficiente para uma “contra-análise” da sociedade e na compreensão desta no saber histórico (FERRO, 2010, p.33).

Dentro das possibilidades sugeridas por Marc Ferro, José D`Assunção Barros vem dizer que o cinema se torna um meio de representação da sociedade que o produz:

“O cinema não é apenas uma forma de expressão cultural, mas também um “meio de representação”. Por meio de um filme, representa-se algo, seja uma realidade percebida e interpretada, seja um mundo imaginário livremente criado pelos autores de um filme” (2012, p.56).

Um “filme histórico”, que é o caso do selecionado nesse trabalho, é aquele que busca estetizar e representar fatos históricos conhecidos de forma mais fiel à realidade ou de maneira ficcional. Esse tipo de filme é uma fonte primordial para a percepção dos processos históricos ocorridos e para o estudo das representações historiográficas (BARROS, 2012, p.59). Um filme pode ser tomado pelo historiador como agente histórico e como legítima fonte histórica, tendo em vista metodologias próprias para se trabalhar com ele.

Além de considerado um “filme histórico”, Lampião e Maria Bonita (1982) se encaixa na definição de Alcides Freire Ramos como um filme de estilo heroico e de estética naturalista, assim como a maioria das produções cinematográficas brasileiras sobre a história do país:

“No que se refere ao estilo heroico, pode-se afirmar que a escola de Primeiro e Segundo graus (devido a seus métodos de ensino) e os livros didáticos (devido a sua apresentação fechada dissimuladora dos conflitos e das divergências) não consegue romper totalmente com ele, por isso essa visão da história tende a disseminar-se pela sociedade” (RAMOS, 1994, p.9).

Esse fato deve-se a reprodução do cinema nacional estar influenciada fortemente pela filosofia histórica dominante que dificilmente rompe nos ensinos Médio e Fundamental com a história tradicional ( RAMOS, 1994). Entretanto, esse fato não exclui a possibilidade de trabalhar o filme como documento histórico pelo professor em sala de aula, pois ele não precisa legitimar o discurso dominante em sua prática pedagógica e na abordagem à obra cinematográfica, mas pode muito bem utilizar das sugestões de Marc Ferro que possibilitará uma análise mais profunda e crítica resultando em uma aula de conteúdo muito mais abrangente e proveitosa.

Conclusão

Diante do referencial teórico e metodológico adotado para esse trabalho conclui-se que a adoção de um filme como objeto, fonte e representação pode auxiliar no ensino da disciplina e em uma melhor compreensão do tema estudado.

A utilização do filme Lampião e Maria Bonita (1982) deveu-se a sua ligação direta com a matéria estudada pelos alunos na disciplina permitindo um diálogo entre o Cinema e a História.  Além disso, objetivou-se uma espécie de ilustração temporal, correndo risco sim de interpretações anacrônicas, mas com a ciência de que se pode trabalhar nesse sentido fazendo que a projeção de uma realidade temporal passada seja abordada como um todo numa sistematização de conhecimentos provindos da inter-relação entre o filme e sua historicidade.

A exibição do filme será feita em recortes, levando em consideração o tempo de aula e a abordagem direta dada ao assunto, impedindo assim uma extensa divagação sobre as particularidades da obra e sobre todo o conjunto de conhecimentos ligados a ela, porém não descartando a profundidade da análise.

As partes selecionadas que serão exibidas objetivam levar o aluno diretamente ao ponto de discussão, que como já vimos, trata-se de utilizar do cinema como fonte e, de certa forma, dos filmes como documentos para se entender todo um processo de transformações sociais, políticas, culturais, econômicas e, sobretudo uma aproximação de mentalidade com a da época trabalhando cautelosamente para se evitar anacronismos, solicitando também essa sensibilidade maior por parte dos alunos.

Referências

Bruno José Yashinishi é Graduado em História pela Universidade Estadual do Norte do Paraná, em Filosofia pelo Centro Educacional Claretiano Studium Theologicum e Graduando em Sociologia pela Universidade Paulista. Mestrando em História, Cultura e Identidades pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.

AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p. 145-151.
BARROS, José D`Assunção. Cinema e História: entre expressões e representações. In: ___________. NÓVOA, Jorge (orgs). Cinema-História: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012.
BERNADET, Jean-Claude. RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1994.
CLEMENTE, Marcos Edílson de Araújo. Cangaço e cangaceiros: histórias e imagens. In: Revista de História e estudos culturais. Vol. 4, ano IV, nº 4.Outubro, novembro e dezembro de 2007.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2006.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo:  Paz e Terra, 2010.
FRANÇA, Rafael. Cangaço. Recife: UFPE, 2012. (trabalho de graduação em História).
GOMES, Carolina. HACKMAYER, Mônica. PRIMO, Virginia. Lampião, Virgulino e o mito. In: Agenda eclética, 2008.
 HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
PETA, Nicolina Luiza. OJEDA, Eduardo Aparício Baez. História: Uma abordagem integrada. São Paulo: Moderna, 1999.
RESENDE, Maria Efigênia Lage. O processo político na Primeira República e o regime oligárquico. In: FERREIRA, Jorge. DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.



2 comentários:

  1. Olá Bruno. É interessante que alguém do interior do Paraná tenha se interessado pelo sertão nordestino, muito bom! Só não consegui perceber a análise do filme em si. Seria legal que você tivesse colocado imagens dele, e como trabalhá-lo.

    ResponderExcluir
  2. Olá Bruno,

    Caramba muito bom o seu texto e também a forma como você elaborou tudo foi muito bonito. Parabéns pela atividade e relacionar as faces que a nossa história brasileira e principalmente pernambucana com a sala de aula foi uma boa sacada. Sendo assim seria possível relacionar o filme e o uma roda de debate sobre outros movimentos sociais que aconteceram no Brasil? Se sim, qual movimento poderia entrar nesse debate?

    Ass: Lucas Paes do Amaral

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.