Pós-guerra em sala – memória e cinema a partir
do filme ‘Rapsódia em Agosto’(1991) de Akira Kurosawa
Introdução
A
utilização de fontes cinematográficas para pesquisa em História se da como algo
relativamente recente, as aplicações delas em sala ainda são incertas, assim
sendo busca-se trazer dinamismo a sala de aula e ao conhecimento histórico dos
alunos ao aplicar o uso de tecnologias - tais como o cinema – em sala.
Como Marcos Napolitano(2011)
descreve, é preciso entender que o cinema já faz parte do cotidiano dos alunos,
no caso de alunos de ensino médio é necessário, também, compreender que muitas
vezes essa faixa etária é influenciada diretamente pelo cinema, tal como outras
mídias, logo a aplicação do cinema em sala torna-se uma ferramenta poderosa
para criar uma ponte de diálogo com o jovem.
Entretanto o filme não fala por si
só e o aluno – que muitas vezes é acostumado a assistir ao filme passivamente –
não são capazes de problematizarem entre si, é preciso que aja a intervenção do
professor como mediador entre o aluno-filme, para que o filme seja
problematizado da maneira correta. O cinema em sala não deve ser mero fator
estético, suporte da aula, ele pode ser utilizado como ilustração de um
determinado período histórico, ou falas arcaicas através de uma interpretação
cênica dos atores, porém seu poder de problematização de temas históricos,
sociológicos e culturais deve ser explorado, considerando que o aluno vê apenas
ao filme e não o cinema.
O professor enquanto mediador deve
pré-analisar o filme, problematiza-lo para si e definir se é possível passar a
película completa – ideal para compreensão da obra como um todo – ou devido ao
tempo escasso apenas recortes serão possíveis, e como Circe Bittencourt(2008)
pontua, ver se o debate proporcionado pelo filme é adequado para a idade alvo
dos estudantes. Nas duas opções a analise deve ser feita antecipadamente pelo
professor, a exemplo do método proposto por Marcos Napolitano(2005), separar o
filme em, quadros, cortes de plano e sequências, estabelecer a relação entre a
construção do cenário, figurino, atuação das personagens e o contexto geral do
filme, assim como destrinchar as entrelinhas do filme, desta forma ele será
apto a conduzir a discussão proposta com qualidade.
Cinema,
memória e o ensino
A questão da memória é um dos
aspectos mais relevantes para a História e deve ser também na sala de aula da
disciplina, o uso do cinema para entrelaçar ambos pode vir a ser uma ótima
ferramenta didática, quando bem aplicada.
Um tópico chave a ser explorado é a
Segunda Guerra Mundial, que para além da narrativa pronta inserida nos livros
didáticos tem muitas questões para serem pontuadas, como a questão da memória
japonesa no pós-guerra, que pode ser explorada no ensino médio a partir da
película ‘Rapsódia em Agosto’(1991) do diretor japonês Akira Kurosawa.
O
filme se passa no Japão da década de 90, centralizando em torno da questão de
memória e imaginário nuclear em Nagasaki, passando por três gerações distintas
de personagens que contrapõe o Japão antes e pós-guerra : uma velha senhora
chamada Kane, que perdeu o marido em 1945 na explosão da bomba em Nagasaki, os
filhos da senhora, os netos dela – respectivamente 2º e 3º geração – e um
nipo-americano, sobrinho de Kane.O filme passa no desenrolar da visita dos
quatro netos a sua avó Kane, nascidos após o milagre econômico japonês,
enquanto os pais deles vão visitar um suposto irmão de Kane que reestabeleceu
contato recentemente do Havaí. O ambiente rural e simplista da avó dos garotos
não agradaria nem um pouco a eles e assim que possível eles escapam para o
ambiente urbano, chegando a entrar em contato com o local onde seu avô teria
falecido com a explosão da bomba nuclear.
Sendo
que aos poucos eles começam a criar respeito às memórias e a pessoa de sua avó
enquanto é produzida uma retomada da narrativa de vitimização contra a
narrativa de guerra (bombas necessárias para o fim da guerra), partindo da avó
que representa o antes da guerra, a segunda geração representando a primeira
geração pós-guerra que supostamente teria sido seduzida pela “supremacia
americana” enquanto a terceira geração (dos netos) é marcada por uma geração da
sociedade de consumo.
Os conceitos principais a serem trabalhados previamente
serão o de Memória, proposto por Michael Pollak(1989) e utilizando-se da obra
de Yoshikuni Igarashi(2011), além do conceito de “lugar de memória” proposto
por Pierre Nora(1993); Em referência ao
quadro político-sociocultural do Japão durante a guerra será feito com base em
Ruth Benedict(1997).
Pollak
diz que a memória parte de indicadores empíricos (lugar de memória) que somados
a criação de um discurso produzem pontos temporais na memória de um grupo que
baseado nas estruturas hierárquicas desse grupo o diferencia dos demais e
reforça sua própria fronteira sociocultural.
É
necessário discernir o que a memória individual e memória coletiva para o
presente trabalho – respectivamente – seria a memória produzida de acordo as
com as experiências individuais de alguém frente aos acontecimentos históricos
não só do indivíduo, mas como também de seu ambiente social que não
necessariamente pode influenciar ou ser influenciada pela memória coletiva. A
memória coletiva seria a memória de massa produzida por discursos e narrativas
oficiais que tendem a silenciar na maioria das vezes essa memória individual.
Vale ressaltar também que para Pollak(1989) a memória não precisa
necessariamente ser evidenciada, o silencio não é o esquecimento dela, mas sim
uma das formas de resistência de uma memória reprimida sobre os discursos
oficiais.
Igarashi
também trabalha sobre o conceito de memória, mais especificamente – partindo do
título de seu livro – Corpos da Memória(2011), cujo conceito envolve japoneses
sobreviventes da guerra que se veem em um mundo de ruínas do pós-guerra e seus
corpos seriam uma das poucas coisas restantes do período de guerra, passando a
assim a considera-los como portadores de uma memória envolvente que entra em
conflito com as narrativas que estavam a ser produzidas neste pós guerra,
refletindo este conceito através da personagem Kane, do filme, que também é uma
sobrevivente.
Para
problematização do filme torna-se também necessário compreender o Japão de
antes e o Japão do pós-guerra, Ruth Benedict(1997) escreve sobre a questão da
cultura da honra na sociedade nipônica e como os japoneses agem em conformidade
a esta.
Para
o conceito de lugar de memória, partindo então da conceituação de Pierre Nora
(1993), entenderemos que o filme é um lugar de memória, pois, como afirmado
pelo autor, ele é intencional e desperta no espectador um imaginário também
intencional enquanto simultaneamente representa um coletivo – e também
simultaneamente representa cada indivíduo envolto de sua aura histórica. O
filme enquanto lugar de memória reconstrói um Japão já não mais acessível,
coloca em xeque o status quo da
realidade na medida que propõe ser um marco do imaginário do caos no pós-guerra
nipônico.
Durante
a aula o professor deve tomar cuidado para não bombardear os alunos com os conceitos
a partir do filme, mas é possível que se explique as questões da memória, da
cultura da honra com a memória de dor que o filme tenta explicitar através da
personagem de Kane. O professor deve agir como mediador neste contexto e buscar
formas de elucidar essas problemáticas especificas com a turma em que a
atividade for aplicada, além de estabelecer os critérios dentro do período de
tempo proposto.
As
discussões podem tomar forma através dos questionamentos gerados pelo filme,
seja a tristeza que Kane traz sobre o conflito, os netos que se enfurecem com
os Estados Unidos ao conhecerem as memórias da avó, os filhos de Kane que de
certa forma sentem vergonha do passado Imperial do Japão ou com o
nipo-americano Clark que carrega a culpa das bombas atômicas.
A
atividade proposta acima foi veiculada em uma oficina extra curricular com
alunos de ensino médio(faixa etária de 15 a 17 anos) de uma determinada escola
particular em Arapongas, com o tempo de aproximadamente pouco mais de três
horas, com o filme e cerca de uma hora e meia de discussão sobre o filme no
formato aula oficina proposto por Isabel Barca(2004), em que o professor molda
e guia a discussão a partir dos alunos e suas respostas.
Considerações finais
O
uso das novas mídias como fonte documental na História e seus usos em salas de
aula devem ser encorajados, uma vez que ainda sofrem muito preconceito com sua
utilização, cabe ao professor aprender a manusear a ferramenta e utiliza-la de
acordo com as necessidades.
Ainda
que as novas fontes sejam tentadoras aos olhos dos mais jovens, é, também, preciso
certo cuidado ao utiliza-las em aula, ao considerarmos que elas devem ser
devidamente pré-trabalhadas pelo professor, para que este esteja apto a
conduzir a investigação proposta e ela não se torna apenas uma ilustração da
aula, além de apresentar detalhadamente as ideias contidas na obra que
colaboram para a aula proposta.
Considera-se,
ainda, que apresentar conceitos em sala de aula possa ser encorajado, eles
podem ser apresentados de maneiras mais ligadas ao cotidiano dos alunos,
levando em consideração a experiência individual-social do público alvo. Ao
apresentarmos o conceito de ‘lugar de memória’ – por exemplo – podemos
relacionar com monumentos locais, que estão na realidade dos alunos, nos quais
os marcos fundadores, muito presentes em cidades menores são de amplo
conhecimento; lembrando os alunos do significado destes monumentos e que
narrativa eles carregam consigo.
O
professor também tem de considerar que os alunos não necessariamente carregam a mesma ideia ou
opinião que o professor carrega consigo sobre determinados temas sociais e
políticos que as películas podem vir a apresentar; neste caso o professor deve
tomar cuidado para não se portar como “detentor da narrativa verdadeira”,
estimular o debate de ideias diferentes e promover uma discussão saudável.
Por fim, o desafio do tempo e de cumprir os objetivos
estabelecidos pela escola são reais, dificultam aulas fora do padrão clássico
na realidade brasileira, mas com um bom planejamento antecipado o professor
deve ser capaz de aplicar seu trabalho.
Referências
Douglas Pastrello especialista em
filosofia e mestrando em história política pela UEM, com ênfase na história
recente do Japão e análise de fontes cinematográficas.
1.
Rapsódia
em agosto. Direção: Akira Kurosawa. Produtor:
Hisao Kurosawa. Roteiro: Akira Kurosawa. Japão: Shochiku Films Ltd.
Distribuidora: Shochiku Films Ltd. 1991. DVD(98min): sonoro, cores, legendado.
Port/Inglês.
2.
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In: Para uma educação de qualidade: Atas da
Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação
(CIED)/ Instituto de Educação e Psicologia,Universidadedo Minho, 2004, p. 131 –
144.
BENEDICT,
Ruth. O crisântemo e a espada: Padrões da Cultura Japonesa. São Paulo:
Perspectiva, 1997.
BITTENCOURT,
Circe M.F. Ensino de história:
fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2008.
IGARASHI,
Yoshikuni. Corpos da memória: Narrativas do pós-guerra na cultura
japonesa (1945-1970) Tradução deMarco Souza e Marcela Canizo. São Paulo:
Annablume, 2011.
NAPOLITANO, Marcos. Fontes
audiovisuais: a História depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.).
Fontes históricas. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 235-289.
NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula. São
Paulo: Editora contexto. 2011.
NORA,
Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto
História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28
NOVIELLI,
Maria Roberta. História do cinema japonês. Brasília: Editora UNB, 2007.POLLAK, Michael. Memória,
esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3,
1989, p. 3-15.
SAKURAI, Célia. Os japoneses.
São Paulo: Contexto, 2011.
Douglas, não apenas a temática que você escolheu é essencial, mas a sua opção fílmica, Rapsódia em Agosto, é impecável. Cada vez mais a escola pode se transformar num espaço de educação no sentido mais amplo, no qual o professor ensina história e apresenta Kurosawa ao aluno. Tenho algumas dúvidas: como você imagina a aula em si? Já elaborou um plano de aula? Quais os objetivos dessa lição? Quais as limitações (técnicas, ideológicas, políticas) que você vislumbra para sua proposta?
ResponderExcluirA aula poderia ser inserida em um intermedio após o tópico da Segunda Guerra Mundial e deveria ser feita pensando em três momento: primeiro uma introdução ao filme e quais são os elementos pertinentes da narrativa, um segundo composto pelo vislumbre do filme e o terceiro momento de discussão em sala.
ExcluirNo primeiro seria importante que o professor frizasse a importância que o filme carrega na questão da memória, simultaneamente elucidando brevemente aos alunos o que seria isso e o que ele representa.
O filme de preferência exibido na integra, caso não for possível cabe ao professor escolher os recortes pertinentes.
No terceiro momento seria a discussão sobre, cabendo levantar as questão da história de narrativa única, questões das consequências da guerra na guerra fria para além do maniqueismo socialismo x capitalismo;
penso que os objetivos principais tornam-se confrontar a ideia de uma narrativa única(ou dos vencedores) e demonstrar que o apaziguamento que o Japão sofreu no pós-guerra tem suas consequências traumaticas, inclusive em civis que nada estavam relacionados com a violência do Império japonês.
Entre as limitações imagino que sejam, primeiro de tempo, segundo que poderá haver um confronto ideológico com o conhecimento prévio dos alunos sobre a "necessidade do uso da bomba atômica" e a questão da "crueldade japonesa na guerra", que considerando o momento político que nos encontramos essa atividade pode vir a transparecer como "anti-americana" embora não a seja, o que também torna esta atividade cada vez mais necessária para evitar os perigos de uma História única.
Douglas Tacone Pastrello
Eu também pensei na variável "tempo" como primeiro obstáculo ao seu projeto. Seria possível articular mais tempo didático? Talvez fazer um projeto integrado com o professor de outra disciplina, para assim poder passar o filme inteiro? Na sua escola há espaço para esse trabalho transdisciplinar?
ExcluirNa escola em que trabalho, houve/há essa possibilidade, creio que cada escola teria sua propria realidade para buscar soluções quanto a aplicabilidade da ideia. Vejo que uma forma efetiva de solucionar isso seria buscar uma interdisciplinariedade entre as humanidades(geografia, sociologia)
ExcluirDouglas Tacone Pastrello